quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

11 NA FILA DA COMISSÃO, Do livro Do Miolo do Sertão. A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte

NA FILA DA COMISSÃO
Do livro Do Miolo do Sertão
pags. 25 a 28.

Mesmo vivendo em tempos tão difíceis, eu ainda não tinha experimentado de perto o drama da seca. Aos meus ouvidos ecoavam as palavras dos mais velhos, falando das tragédias de 77, do 15 e de 19, quando os retirantes caíam como folhas secas pelo chão e morriam feito animais caquéticos pelas estradas. Mas eram vozes longínquas, recordada mais para causa admiração. Pois seca de verdade ao fazia parte do meu cotidiano. Havia nãos em que as chuvas eram poucas, as águas escassas, a lavoura mal sucedida, o gado maltratado. Água, porém, nunca nos faltou, ainda que fosse uma água salobra e cheia de caparrosa como nunca encontrei em qualquer outro lugar do mundo. O velho olho d’água garantia a adultos e crianças o banho à sombra do pé de oiticica e, sagrando em córrego pelo baixio, nos dava uma revência fácil para a abertura de cacimbas quase à flor da terra.
Aí chegou 32. Inverno bom não se poderia esperar. Não só porque 1930 e 31 tinham sido sovinas em chuvas, mas porque, como se dizia, “ano bissexto, ou ele ou o camarada dele”. E a gente, esperando sempre o melhor, pedia a Deus que, no caso, o “camarada” do bissexto 32 já tivesse sido 1931, de safra madrasta.
As primeiras chuvas chegaram. O plantio foi feito. O feijão e o algodão cresceram. Em algumas roças o milho chegou a botar boneca e pendão. Pronto. De repente, os céus se trancaram como torneiras. A natureza nos pregava uma peça, tendo antes levado o que nos restava de sementes de cereais para comer. A lagarta e a abelha silvestre empanzinaram-se como crianças gulosas na lavoura destroçada.
Um ano pela frente sem nada para comer. Para onde iria a minha mãe viúva com os filhos órfãos? A minha irmã Teté, carregando a duras penas o marido reumático numa rede, para onde iria? E Nana, tão miudinha e tão cedo também viúva, o que seria feito dela? E Zefa Bilisqueta, minha prima, moça velha?
Eu tinha, como disse, uma vontade grande de ir morar na cidade. Mas, qualquer, em meio à seca implacável, ouvi essa recomendação de minha irmã Alodias, outro sentimento me animou de imediato a deixar a Lagoa das Braúnas. Distribuindo-me, junto com meus primos Zuca e Oliva, de tia Vitória (irmã de Dosanjo), no apertado espaço de dois caçuás, compondo a mais desajeitada carga de burro, saímos rumo a Cajazeiras, para a casa do meu avô materno, José Joaquim Rolim, funcionário da Prefeitura. Aí pude inscrever-me na fila diária dos necessitados e receber a ajuda que o Governo estava mandando distribuir para os flagelados da seca. Obtive três cartões. Quando o feitor anunciava os nomes de Angelina Duarte Passos, lá me apresentava eu, mal cabendo entre as pernas das pessoas grandes. Com pressa de faminto eu abria a boca larga do saco da farinha, do feijão, da rapadura, recolhendo aqueles mantimentos como quem buscava um tesouro. Na outra ponta da estrada, nas primeira quebradas do sertão cearense, um grupo familiar inteiro iria ter assegurado a sua sobrevivência por causa daquela coleta miraculosa.
Permaneci nessa incumbência até o mês de março de 1933. De posse do último donativo, resolvi eu mesmo ir deixá-lo em casa, substituindo nessa tarefa a meu irmão Zé Matias. Fazia tempo estava distante dos meus. Pus aos ombros a trouxa da Comissão e larguei a alpercata no eito do mundo, em procura do Melão. Eram umas duas horas da tarde. Eu sabia o caminho, e isso me bastava. Adiante estavam os Veados, dos Lins, depois os Remédios, de Santino, e Antonio Félix, o Boi Morto, até chegar ao Vale Verde, de Luís Boca-aberta, avançando no caminho do São José. Por enquanto, eu seria ajudado pela estrada de rodagem. Depois já escurecendo, eu tocaria pros lados do Riacho do Padre e do Chiqueiro de Cabras. Era uma longa caminhada. A mata poderia meter medo a qualquer um, menos a mim, que superava medo e cansaço pensando na riqueza de alimentos que levava às costas. Da Boa Fé para a Caiçara, o cheiro do resíduo de algodão nos cochos do gado do Major Galdino e os aguapés do açudão cheiroso, sobre cujo balde eu estaria passando pelas nove horas. Depois, o cancelão gemente e, enfim, a provisória, o começa de estrada aberta nas secas anteriores.
Cheguei ao Melão pelas onze das noite, causando a todos a maior admiração. Como podia um menino de apenas dez anos ter andado cinco léguas naquele escuro e com aquele fardo na cabeça? Minha mãe acordou sobressaltada e me abraçou em prantos. Não só voltava a ver o filho ausente, mas aquela façanha lhe trazia à memória a falta do segundo “homem da família”, Zé Matias, assassinado a pouco mais de um mês.
Hoje, contando a história do menino que se fez assíduo à fila da Comissão  para amenizar as agruras dos seus, percorro, com os olhos erguidos aos céus, a distância do caminho que me levou, anos depois, na chefia do Poder Público cajazeirense, a distribuir a tantos necessitados anônimos a mesma contribuição que eu dispensava com tanta vontade para a minha família.
Eu entendia aqueles pedintes para além da mera solidariedade, pois aprendera desde cedo o que significa, ao duro, ter precisão.







terça-feira, 11 de janeiro de 2011

10) 1930, DE PRINCESA, DE JOÃO PESSOA, DA REVOLUÇÃO, Do livro Do Miolo do Sertão. A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte

1930, DE PRINCESA, DE JOÃO PESSOA, DA REVOLUÇÃO
Do livro Do Miolo do Sertão
pag. 23 a 24
O que é uma revolução?
Digam o que quiserem os estudiosos, a palavra revolução para mim quase não chega a evocar a luta armada, o derramamento de sangue, a massa organizada na praça pública, a deposição do Governo, a mudança de regime. Para mim – afora o sentido inafastável de risco e perigo, de trepidação das forças sociais, que só com o passar dos anos, incorporei ao núcleo original do meu entendimento – revolução me vem antes associada à idéia de alegria ruidosa, de rostos estranhos, mas amigos, de conversa escondida de gente grande.
Que outro registro fixou na memória esse menino perdido naqueles grotões onde não se conhecia jornal, e aonde as notícias chegavam sempre atrasadas, entrecortadas de cochichos e vagas alusões da parte dos adultos, de boatos contraditórios que já metiam medo porque os fatos já haviam se passado e aconteceram “lá longe”?
Quase nada tenho a depor sobre a famosa Revolução de 30. Naqueles tempos, o Brasil era ainda uma imensa fazenda e eu era parte da “Fazenda Brasil”. As “coisa da capital” nos eram estranhas e inexplicáveis como episódios do outro mundo. Já nem me refiro a Getúlio Vargas, nome distante demais que não circulou nessa época entre nós. Mas que princesa foi essa que os mais velhos falavam que tinha se revoltado? Ela devia ser uma mulher terrível para levantar assim a voz, pois as mulheres ao meu redor eram, sem exceção, a sombra de seus maridos ou dos homens de família em geral e, como tais, não costumavam tomar sequer a palavra em público. Que pessoa mais esquisita era esse tal de João Pessoa! Em que trapalhada ele foi se meter, hein? Pois não é que, por causa dele, apareceram soldados pra tudo quanto lado? E esse Zé Pereira Lima? Um coronel maluco, só podia ser. Pra que lado ficava essa capital da Paraíba? E o tiro no presidente?
A Revolução de 30 para os habitantes do Melão* - completo hoje pelo depoimento dos mais velhos – não significou mais do que a visita, por uma semana quando muito, de “guardas da fronteira”, que desciam nessa época até o Melão e, quebrando a monotonia daqueles rostos sempre os mesmos, vinham se arranchar na “Casa de Lã”, o depósito abandonado da antiga bolandeira do meu pai. Para a meninada era quase uma festa. Na minha memória gravou-se o nome de um tenente Benedito, sem que possa precisar nada de sua fisionomia. Da “tropa” desse oficial – três ou quatro homens, se muito – ficou o caso daquele soldado que, tendo ido ao Baixio para os festejos de São João, por lá embriagou-se a mais não poder. No caminho de volta, com o calor da viagem, ainda achou interessante tomar mais uns tragos. Entornou a garrafa e procurou alguma coisa para tira-gosto. Nada para completar o sabor da cachaça. Não podia ser. lembrou-se que havia comprado uns biscoitos, mas esqueceu que misturara o pacote com umas bombas que lhe haviam sobrado da brincadeira joanina. Ao enfiar as mãos no bolso e puxar pela guloseima, deu-se por si mastigando uma bomba, que lhe explodiu entre os dentes, deixando-lhe a cara em petição de miséria.

* Sítio no Ceará, fronteiriço da Paraíba, onde Chico Rolim nasceu e viveu a sua infância.




domingo, 2 de janeiro de 2011

09 DOUTOR POR TRÊS MESES, Do livro Do Miolo do Sertão. A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte

DOUTOR POR TRÊS MESES
Do livro Do Miolo do Sertão
pag. 21 a 23

Aos oito anos de idade, eu tive pela primeira vez a felicidade de por os pés numa escola. Desde cedo intuí – por experiência nascida do próprio tato, de ver aqueles homens suados, vestindo sacos de sal ou açúcar, com mil remendos, pés descalços mãos calejadas – eu intuí que o analfabeto carrega às vezes, na vida, um fardo mais pesado do que um animal de carga. 
Saber ler. A sedução das letras era tamanha sobre os meus olhos de menino que, antes de ter a Carta de ABC, eu já havia composto o meu próprio código de entendimento do alfabeto. Começou quando me disseram que o A era uma canga de porco. Daí para a frente, à medida que eu individuando casa sinal gráfico, construía minha própria explicação para não esquecê-lo mnnca mais: o B é um menino duas vezes buchudo, o C é uma roçadeira sem cabo, o F é uma foice mal feita, o G é um sujeito que, de tão gordo, abriu a barriga, o H é uma cancela só a trava do meio, o J é um anzol esperando o peixe, o O é a boca de um cachimbo, o Q é um gato de pé com o rabo pro lado, o S é uma cobra se enrolando, o T é um mourão com a trave em cima, o V é um boi de chifre grande o X é uma cruz em pé e de pernas do mesmo tamanho...
Saber ler. A sedução das letras era tamanha sobre os meus olhos de menino que, antes de ter a Carta de ABC, eu já havia composto o meu próprio código de entendimento do alfabeto. Começou quando me disseram que o A era uma canga de porco. Daí para a frente, à medida que eu individuando casa sinal gráfico, construía minha própria explicação para não esquecê-lo mnnca mais: o B é um menino duas vezes buchudo, o C é uma roçadeira sem cabo, o F é uma foice mal feita, o G é um sujeito que, de tão gordo, abriu a barriga, o H é uma cancela só a trava do meio, o J é um anzol esperando o peixe, o O é a boca de um cachimbo, o Q é um gato de pé com o rabo pro lado, o S é uma cobra se enrolando, o T é um mourão com a trave em cima, o V é um boi de chifre grande o X é uma cruz em pé e de pernas do mesmo tamanho...
A mestre era minha irmã Teté, na paciente cantilena da lição: um bê-com-á, bê-a-bá, um bê-com-é, bê-e-bé. A escola era em sua própria casa. Por isso tudo, e pela vantagem de não ter que ir trabalhar todas as manhãs na enxada, eu era um menino privilegiado. Rapidamente passei da Carta de ABC à Cartilha, e senti, com um prazer incomum, que estava descobrindo as fronteiras de um mundo novo. Era uma paixão de encantado. Depois que descobri eu mesmo a capacidade de juntar as letras em palavras, tratei de entender as palavras nas frases. Sem esperar que a professora prescrevesse a lição, eu ia catando, página após página, a sonora reverberação, o fulgor indescritível das primeiras palavras escritas em minha retinas.
Com o Manuscrito – que era esse o nome do livro de cópias – eu fui além dos exercícios nele contidos. Não havia pedaço de papel disponível que não dobrasse e guardasse com cuidado para depois aproveitar em tarefas adicionais de escrita que minha irmã-professora me passava para a noite, à luz do candeeiro.
Assim me foi possível, sem grande surpresa, chegar ao Primeiro Livro e, depois, ir avançando, com o meu próprio esforço, através do Segundo, do Terceiro e até do Quarto livro.
Bom era aos sábados, na hora do Argumento, a sabatina tradicional. A mestra entronizava a palmatória no recinto escolar com o mesmo rigor e impotência, mas, num gesto é magnânimo, declinava de punir ela mesma, os discípulos faltosos. O castigo seria aplicado pelo colega mais atento nos estudos. Então, empunhando a arma ameaçadora, ela interrogava ao primeiro aluno. Para livrar-se do bolo, era suficiente saber a resposta. Quando alguém se embatucava, a mesma pergunta era dirigida ao seguinte. A resposta correta nos dava o direito de tomar da palmatória e aplicar corretivo àquele que incidira no erro.
A minha primeira escola – pobre escola rural de meus sonhos de criança – não chegou a durar mais que três meses. A minha incursão nos segredos do mundo letrado foi interrompida pelo meio, quando, na segunda metade do ano de 1930, eu tive de acompanhar o meu cunhado Ciço Moreira e minha irmã Alodias, casados de pouco, em sua mudança para Lagoa das Braúnas, para a pequena porção de terra do nosso tio Enéias Rolim.