quarta-feira, 10 de julho de 2013

31 - CAJAZEIRAS DO PADRE ROLIM (2), Do livro Do Miolo do Sertão. A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte

CAJAZEIRAS DO PADRE ROLIM (2)
Do livro Do Miolo do Sertão
A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte

pags. 64 a 66
     Cajazeiras do Rio do Peixe, Cajazeiras do Padre Rolim. Ser portador desse sobrenome é uma alta distinção de que muito se or-gulham os cajazeirenses, e por muitas razões. Em primeiro plano, a nobreza de origem: os lares sagrados do Comandante Vital de Sousa Rolim e Ana Albuquerque – a veneranda Mãe Aninha – ao lado do brasão do apóstolo e educador que foi o Padre Inácio de Sousa Rolim, Anchieta dos nossos sertões, de valor e virtudes só comparáveis a esse outro grande missionário que foi, no Ceará, o Padre Ibiapina.
Em segundo lugar, a ime-diata identificação da proce-dência: quem é Rolim, não precisa dizer que é cidadão das Cajazeiras centenárias. E – não menos importante – o nome já indica a herança do patrimônio cultural que exalçou a terra dos Rolim à posição de “cidade que ensinou a Paraíba a ler”, segundo consagração lapidar de Alcides Carneiro. Na verdade, até para além do solo paraibano, o Nordeste mesmo veio assentar-se nos  bancos escolares de Caja-zeiras.
    Aqui estudou Irineu Joffily, pioneiro da imprensa na Paraíba. Por aqui pas-saram gerações e gerações de intelectuais e líderes políticos da Região. A ir-radiação do Colégio Padre Rolim chegou até o Piauí, de onde veio o futuro senador José de Freitas, mais tarde Presidente da Província, e hoje home de cidade naquele território. Do Rio Grande do Norte, também veio ser aluno do Padre Mestre o primeiro cardeal da América Latina, Dom Joaquim Arcoverde. E o próprio Padim Ciço do Juazeiro aqui deixou a marca dos seus primeiros milagres. (No seu livro O Patriarca do Juazeiro, o Padre Azarias Sobreira registra – sem dizer onde encontro prova disso – que o jovem Cícero Romão Batista aqui emplacou as suas primeiras façanhas tauma-túrgicas, fazendo repousar o chapéu nas paredes sem cabides do famoso edu-candário).




sábado, 22 de junho de 2013

30 - CAJAZEIRAS DO PADRE ROLIM (1), Do livro Do Miolo do Sertão. A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte

CAJAZEIRAS DO PADRE ROLIM (1)
Do livro Do Miolo do Sertão
A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte

pags. 64 a 66 
- Compadre Chico!
A voz vinha de dentro do corredor, a pressa dos passos marcando o chão de tijolos lisos.
- Compadre Chico!
Por cima das quatro paredes do banheiro ao ar livre, no quintal da velha pensão em que me hospedava, conheci o vulto do meu cunhado Chagas Gouveia.
- Compadre, vim lhe dizer uma coisa. Se apresse, que o negócio é sério.
O que poderia ser? Minha irmã Stela já havia descansado do primeiro filho. Se algo de mal lhe tiveste acontecido, não seria certamente o marido que viria me trazer a notícia. O meu “povo” do Melão eu tinha visitado havia menos de um mês, e todos estavam bem.
Mas Chagas não desmontava a cara de alarme. Atirei as últimas lapadas d’água no corpo e saí pra me entender com o cunhado:
- O que houve, compadre?
- O que houve foi que Valdemar desfez o noivado de repente e está lá feito doido. O pessoal tá pedindo pra você dar um pulinho no Melão.
Mandei selar o animal enquanto me aprontava às pressas. Era por volta da seis da tarde. Sem demora viajamos e, como sempre, por volta da meia noite estávamos em casa. De pronto percebi que o meu cunhado tinha exagerado no relato. Em todo caso, convidei meu irmão a voltar comigo para o Umari, de onde depois sairíamos a um passeio pelas cidades próximas da Paraíba. Mas não revelei logo os planos. Preferi tirar a limpo a conversa Chaga do Melão sobre Valdemar:
- Que conversa é essa que você acabou o casamento e está doido?
- Olha, acabar o casamento é uma questão pessoal. Quero guardar comigo as últimas razões. Para faltar a verdade, eu fiz foi inventar que estou doido, e é pra casar que estou doido.
- se é assim, por que desfez o noivado?
- Por isso mesmo. Estou doido pra casar e estou doido para sair do Melão. E vejo cada vez mais claro que uma coisa não dá certo com a outra. Se eu casar, nunca mais vou poder deixar isso aqui, que, de fato, não tem grande futuro. Aqui ano dá pra crescer na vida.
Então eu vi o quanto tinham sido iluminados os passos de Chagas Gouveia, ao me levar aquele notícia alarmante, numa encruzilhada definitiva da minha vida, e com faria sentido o plano de “férias” que tiraríamos entre Cajazeiras, Antenor Navarro, Belém (depois Canaã e, atualmente, Uiraúna) e Triunfo.
- Se o problema é esse, Valdemar, você pode ficar tranqüilo, que está resolvido. Eu pensava, há mais tempo, em chamá-lo a entrar comigo no comércio, mas me sentia sem capital suficiente para enfrentarmos o negócio. Agora, já posso lhe dizer que estou pronto para lhe fazer o convite.
Atento ao meu despacho providencial, meu irmão tratou de encontrar outra noiva. Para a maior surpresa – ou para confiar que “casamento e mortalha no céu se talha” – poucos dias depois estava ele de casamento marcado com uma jovem chamada Maria Augusta de Sousa, também de noivado recém-encerrado, e cujo ex-noivo – Zé de Nezinho, primo dela – logo se casaria, por sua vez, com a ex-preferida de Valdemar.
A festa deu a 9 de janeiro de 1948, com desdobramentos estrondosos entre Umari, o Melão e o Sítio Arara, na Paraíba, de onde a jovem era proveniente, filha de um cidadão sempre meticuloso e alinhado, Augusto Bernardino de Sousa, tão moço ainda e com todos os fios de cabelo como capuchos de algodão. Conheci-o pela primeira vez numa ocasião em Ipaumirim, quando curioso, indaguei sobre aquele homem de alva cabeleireira brilhando ao sol, causando inveja por montar o ginete mais bem equipado entre os presentes. Não podia então imaginar que as nossas vidas se cruzariam e me entrelaçariam depois, com liames indestrutíveis.
Para o sítio de seu Augusto acorreram os convidados, familiares e amigos dos noivos. Como testemunha do feito, tratei de fretar o transporte coletivo mais avançado do que se podia dispor àqueles tempos. Fui a Ipaumirim e lá contratei os serviços de Zé Saraiva – ou Zé de Péu, como era alcunhado – dono do único caminhão existente na cidade. O trabalhar de Zé de Péu iria ser o de transportar o pessoal do Umari, passando pelo Melão, entrando em Ipaumirim e, apanhando todos os passageiros que quisessem assistir o casamento em Cajazeiras, prolongando-se o percurso até a Arara, para o grande baile a cargo do afamado sanfoneiro Pedro Bernardinho.
Foi uma festa de arromba, as núpcias da primeira filha do seu Augusto. Primeiro na Arara e depois no Melão, nunca antes se teve notícia de tanta gente reunida, disputando o privilégio de andar em carroceria do caminhão.
Para os meus amigos do Umari – os irmãos Gondim, Zeca Ferreira, Leonísio Granjeiro, sobretudo – aquele iria ser um encontro de despedidas, e eles se desvelaram em tiradas de humor e animação, para marcar antecipadamente a saudade do momento que viria, com imensa dor para mim – dor física, material e acachapante, dor de esmagar o peito – o meu adeus de Umari, para sempre.




segunda-feira, 10 de junho de 2013

29 - UM BANDIDO NA PRAÇA, Do livro Do Miolo do Sertão. A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte

UM BANDIDO NA PRAÇA
Do livro Do Miolo do Sertão
A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte
pags. 64 a 66


Apesar da distância que me separava da família e da dificuldade em me ausentar de minhas obrigações no Umari, eu tia todos os meses ao Melão. A viagem era feita nos fins de semana, a cavalo. Saía no sábado pela seis da tarde, chegando ao destino cedo da madrugada. A volta, no domingo, era no mesmo horário, percorrendo eu invariavelmente, mais de sete léguas à luz da lua ou na escuridão da noite.
Nunca fui metido a bravatas, mas também nunca o medo ou a intimidação tolheram os meus passos ou cercearam a minha iniciativa.
Porém, quando voltei ao Umari naquela manhãzinha de 16  de janeiro de 1948, nunca uma idéia se imprimiu tão clara em minha mente e tão firme em minha decisão:
- É profundamente lamentável, mas eu não posso mais ficar aqui neste lugar.
O que aconteceu?
Quinze anos haviam se passado do acontecimento fatídico já rememorado nessa crônica (quer relembrar? Clique no link). Como se fosse um dia igual a todos na mais ordeira vilazinha cearense, desmontei, guardei os arreios, dei a gorjeta ao moleque que ia tratar o cavalo. Ansioso pelas novidades, mal tomei o café matinal, saí apressado para a loja, que já estava aberta. Renato Gondim me esperando:
- Você foi procurado neste final de semana por uma figura muito estranha.
- Onde?
- Aqui na loja. Ele esteve sentado por mais de duas horas aí nesse banco onde você está. Isso, a primeira vez. Depois teve outras.
- Qual era o nome dele?
- Ele disse, mas não me lembro agora.
- Como era ele?
- Um sujeito mal-encarado, moreno, e magro, um tanto recurvado nos ombros, bigode mal trabalhado, cabelo encaracolado, aí pelos quarenta, talvez mais. Alisava o tempo todo o cabo de um punhal e caculo nos quartos ainda mostrava que ele carregava uma arma de fogo na cintura.
Parei penado. Pensei quem poderia ser?
- Ele não disse o que queria, não?
- Não. Mas acho que não precisava. O jeito de quem vinha provocar uma desordem. Ele fez questão de sentar-se e esperar, mesmo a gente tendo dito que você estava viajando e ia demorar. E, quando foi-se embora, disse pra gente que iria voltar, não tardaria.
Eu insistir que o meu amigo lembrasse o nome daquele sujeito.
- Rapaz, deix’eu ver. Não-sei-o-quê-não-sei-o-quê-Ribeiro.
Tão longe tinha ficado os fatos, que não consegui atinar com a sugestão da charada.
- Você não consegue lembrar o primeiro nome?
- Olhe, o que ele mais fez aqui foi medo. E com medo o eu a gente mais faz é esquecer as coisas. Mas, espere: João, João Ribeiro dos Santos.
Era João dos Santos, o assassino de Zé Matias. Não satisfeito de ter sido pago para matar à traição um amigo – o meu irmão José Matias Duarte – ele procurava, passados tantos dias tão dolorosos, atingir outra vez um membro da família Matias Rolim e, como antes, aquele que ia se destacando para elevar o nome e as condições de vida dos que foram precipitados numa longa noite de infortúnios.
- Você ano pode imaginar quem é esse bandido, Renato.
Resumi a história para o meu sócio. Ao final ele parecia mais emocionado  do que eu:
- Acho que está muito claro o que ele quer de você. Prepare-se.
- Eu poderia fazer isso, se fosse só no mundo. Mas tenho outras pessoas em quem pensar, e é também por elas que trabalho. Tomando esse caminho, as coisas não acabariam nunca.
Sabendo da contrariedade que estava causando ao meu amigo, dominado eu mesmo por uma onda avassaladora de emoção, que me devolvia aos meus onze anos na casa do meu avô em Cajazeiras, ali no mesmo instante participei a Renato Gondim minha decisão. Acertamos a maneira de ele e seu irmão me pagarem o meu capital da firma e, com trinta contos de réis e muito maior a saudade, eu deixei aquele lugarejo ainda hoje tão grato para a minha recordação e tão vivo em minha saudade.

sábado, 25 de maio de 2013

28 A ORELHA DO RAPAZ, Do livro Do Miolo do Sertão. A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte


A ORELHA DO RAPAZ
Do livro Do Miolo do Sertão
A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte
pag. 63
Logo quando cheguei ao Umari, gerente da loja de tecidos que aí se instalava, dei-me ao luxo de procurar uma namorada que bem correspondesse ao padrão representado pelo nível do emprego.
A escolhida? Ora, ninguém menos que a filha adotiva do coronel José Leite, chefe político vitorioso da localidade. Era fácil ver que a moça era um bom partido.
Mas... certa noite estávamos os dois a palestrar ao lado do coronel e sua esposa, que discretamente nos inspeccionavam, quando uns capangas riscaram o terreiro com os cascos dos cavalos:
Pronto, coronel.
Tragam-me a orelha do cabra. Seja como for, eu quero a orelha dele.


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sábado, 20 de abril de 2013

27 NOITE ALTA, CÉU RISONHO


NOITE ALTA, CÉU RISONHO
Do livro Do Miolo do Sertão
A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte
pags. 61a 63


Mas, acima de tudo, era nas noites de serestas que mais nós quebrávamos a monotonia da vida em nossa vila esquecida. Uma vez por mês, pelo menos, conforme combinado, nós nos juntávamos em frente à mercearia de Majestoso Gondim e saíamos noite a dentro a cantar. Era um grupo afinado na voz e no sentimento. Renato Gondim e seu irmão Santino puxavam pelas cordas dos violões. Zeca Ferreira, Leonísio, filho do Delegado Zé Granjeiro, e eu acompanhávamos em respeitoso silêncio ou em solos dos mais inspirados. A melhor voz era a de Majestoso Gondim, abrindo-se em barítono à porta de uma das nossas namoradas, embriagada de êxtase:
O luar cai sobre a mala Qual uma chuva de prata De raríssimo esplendor.
Só tu dormes, não escutas o teu cantor.
Tínhamos por princípio não ingerir um único txugo de bebida alcoólica. Lembro que uma vez, como os tocadores se atrasassem em seu compromisso para além do tempo previsto - de meia noite a uma hora da manhã - Zeca Ferreira e Leonísio me desafiaram para ver quem bebia uma garrafa de Madeira de Lei sem titubear. Era uma provocação à nossa inexperiência etílica. Para descartá-la propus:
Tudo bem. Aceito entrar na brincadeira, com uma condição: abrimos a garrafa e a dividimos em três copos cheios. Cada um de nós se obrigará a tomar a cachaça de uma só vez e sem cuspir no fim.
Para meu desapontamento, os meus colegas aceitaram o desafio. Em vez de uma garrafa, tomamos três, repetidamente. Tudo parecia uma patuscada inocente, menos para Zeca Ferreira que quase perdeu as tripas ao desfazer-se do álcool mal-amigo.
Comportadíssimos na serenata, nós nos permitíamos de vez em quando sair do sério, quando elas terminavam. Tendo encontrado certa vez, na mercearia de Majestoso, uns molhos de palha de carnaúba para fazer cangalha, nós resolvemos esticar a noite numa presepada de causar inveja ao melhor truão de picadeiro. Cobrimo-nos com essas palhas, amarrando-as com barbante, encobrindo o corpo todo, da cabeça aos pés. Com voz de assombração, saímos em bando, "rezando" num vozerio soturno no rumo do cemitério. A vilazinha do Umari era tão tranquila àqueles tempos, que um de seus habitantes, tendo se deitado na própria calçada para aproveitar o fresco da noite, aí adormeceu, deixando a casa aberta. Quando acordou em pleno sono com o barulho daquelas "almas do outro mundo", correu como um tresloucado a fechar portas e janelas. Indo e vindo em torno do cemitério, nós continuamos a "reza". Na manhã do dia seguinte, não foi surpresa ver o coitado ir procurar o coronel José Leite Ribeiro para contar-lhe o ocorrido. Quatro soldados apareceram na semana seguinte para patrulhar a noite do Umari. Só agora saberão que aquilo não passava de uma pândega de rapazes se divertindo noite a dentro numa rua deserta.


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sábado, 6 de abril de 2013

50 UM AVIÃO À ESPERA

O INSPETOR CATURRA
Do livro Do Miolo do Sertão
A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte
pags. 54 a 55

Foi por essa época que me aconteceu um fato que só vou contar porque, de tão incrível, seria guardado pela memória de quem quer que o tivesse vivenciado, como absolutamente incomum, e passado adiante com todos os detalhes, para que ninguém se esquecesse da proeza descomunal.
Felizmente para mim, narro-o citando a testemunha do fato, ainda viva e verdadeira no meio da comunidade paraibana, conforme adiante se verá.
E se quisesse começar causando assombro ou buscando efeitos espetaculares, diria, sem estar muito longe da realidade, que eu já fiz até parar avião. Mas não se espantem, é de outro santo, o glorioso Santo Antônio, o privilégio de deter nos ares objetos mais pesados que o ar. (Segundo a tradição, ele, religiosamente obediente, teve o cuidado de ir pedir licença aos seus superiores para voltar à prática que lhe proibiram, de fazer um milagre depois do outro. E, assim, enquanto discutiam, ficou devidamente suspenso no meio da queda o pedreiro que lhe invocara o nome ao cair de um andaime).
Eu estava em São Paulo, caminhando já para o final dos dias em que podia me ausentar da Prefeitura, sem ter de submeter ao Legislativo Municipal o pedido de afastamento. Reservei, comprei e marquei com todo o cuidado a passagem de volta. A viagem tinha data marcada e, como o avião me deixava no Recife, eu podia me deter na metrópole dos paulistas, ate a véspera de se completarem os quinze dias fatais que me obrigariam a entregar o cargo ao sucessor, na forma da lei.
Eis chegado dia e hora da viagem. Atento à necessidade imperiosa dc dar conta de minhas responsabilidades, estou no aeroporto de Congonhas antes mesmo da hora estipulada. Dirijo-me ao balcão de atendimento aos passageiros, despacho mala e encomendas, dou a revisar o bilhete de passagem, como ordenam as boas normas do metier. Tudo em ordem? Tudo em ordem. Sento, levanto, sento, levanto. A espera está ficando monótona de não se aguentar. Vou tomar um cafezinho, que ninguém é de ferro. Mas, ninguém duvide, continuo atento aos comandos daquela voz cavernosa que sai pelos alto-falantes do grande salão, uma fala que parece feita para ninguém entender o que diz. Eu, não. Claro que entendo perfeitamente o que* vai talando a monstruosidade eletrônica. Senhores passageiros da Varig, finalmente! Senhores passageiros da Varig com destino ao Rio de Janeiro, Recife e Lisboa, apresentem as suas despedidas, embarque pelo portão A cumbuca metálica repete a cantilena, a gente tem que apurar o ouvido. Portão B, portão B, saio procurando pelo imenso corredor onde fica o embarque para a viagem internacional. Beleza, vai ser uma viagem internacional, com gentileza da Varig ainda por cima. Pronto, portão B é este aqui. Posto-me com a solenidade que o caso requer, como um prefeito prestes a retomar o poder. Esta é última chamada para os passageiros do vôo (qual é numero do voo?) da Varig com destino ao Rio de Janeiro Recife e Lisboa. Caramba, se é assim, por que não porque não aparecem os outros companheiros de viagem? Será que eu vou embarcar sozinho? Já dá até para desconfiar, vai sobrar gentileza. Olho prum lado e pra outro, não aparece ninguém eu ali parado num corredor que não se abre. Nunca ouvi dizer disso.
-       O senhor é passageiro do voo que vai pro Rio, pra Recife, pra...
-       Sou, sim.
-       Pelo amor de Deus, corra depressa o quanto possa, se brincar não vai poder embarcar mais.
-       Mas o que foi que houve?
-       O senhor estava esperando no lugar errado.
-       Mas foi esse o lugar que foi dado no alto-falante.
-       Foi. Mas aquele cara deve estar bêbado. Ele trocou os portões de embarque. O senhor vai num voo internacional, e o portão é outro.
Desesperado tanto quanto eu, o homem me entrega aos cuidados de uma moça que corre por cima dos sapatos altos e da saiazinha apertada para fazer aceno ao comandante da aeronave. Os homens que já haviam retirado a escada de acesso ao avião saem na carreira a apanhá-la de volta. Todos reconhecem que foi uma falta inexplicável o que acabaram de fazer com o prefeito de Cajazeiras, que amanhã, sem falta, tem que reassumir o seu posto.
Todos, menos o piloto, que não quer conversa. Do alto de sua cabine e da sua ainda mais alta importância, mostra o relógio para a moça desconsolada e lhe diz que não vai ser besta de perder o horário.
Que situação, hein? Como é que vai ficar isso, mocinha?
-       É, vamos voltar ao balcão.
Aí tratam de colocar panos mornos na ferida, certos de que podem contornar o caso.
-       Façam-me o favor, coloquem-me em contato com o gerente.
O homem se apresenta, também inchado de superioridade:
-       O senhor devia ter ido para o lugar certo esperar o embarque.
O senhor parece que não está sabendo bem do que se trata. Pergunte direitinho ao seu pessoal aí o que aconteceu.
Aparecem os outros funcionários, formam um bolo ao lado do chefe.
-       Acontece que não podemos fazer nada. A ponte aérea para o Rio...
-       Pois é, o senhor manda parar o avião no Rio e me bota no primeiro voo da ponte aérea.
-       Já está encerrada a ponte aérea.
-       Então dê um jeito. Outro voo.
-,Hoje não tem mais voo para o Rio.
E preciso eu mostrar ao homem, com toda clareza, do que se trata:
-       Você tem duas saídas e para mim tanto faz, pode ser uma ou outra. Ou para esse avião no Rio de Janeiro até que o alcance, nem que seja a pé, ou então freta um avião pra ir me deixar agorinha mesmo no Recife.
O gerente coça a cabeça, embaraçado com o inusitado da situação. Mas eu insisto que ele não pode esperar para tomar uma decisão quando queira:
-       Vamos lá, compadre. Tem que ser agora.
Quando menos espero, vejo-me embarcado num teco-teco, só eu e o piloto, diretamente para o Rio de Janeiro. Se este catavento voador resistir até lá, tudo bem. Até nem parece, ei-lo aterrizando no Santos Dumont. Antes que pare o motor, estou à frente de um carro especial com ordem de me levar em disparada para o outro aeroporto, o do Galeão. Falta só acionar as sirenes para liberar o trânsito.
-       O senhor não faz ideia do que isso veio nos causar no aeroporto - diz-me o rapaz que acompanha o motorista.
-       Posso imaginar.
No Galeão, é ainda maior o vexame estampado no rosto de todos. Quando chego, levam-me, quase me pegando pelas mãos, para imediatamente ir tomar o lugar que me negaram.
Ao entrar, a primeira pessoa que avisto é ninguém menos que Epaminondas Braga, conhecido e respeitado comerciante de Cajazeiras, tomado de espanto:
-       Não, Chico, não é possível! Quando o piloto nos comunicava a cada minuto que o voo estava interrompido porque tínhamos que esperar um prefeito desses aí, eu poderia esperar que fosse qualquer pessoa, menos você. Faz uma hora e meia que este avião está parado e a gente padecendo nesse calor do Rio. Tudo por sua causa, Chico!
Não dando para me dirigir a todos os passageiros, pedi desculpas ao meu amigo, hoje residente em Campina Grande, a quem incluo como testemunha do ocorrido, para que ninguém duvide do que é capaz um prefeito numa situação de aperto.

Para adquirir a recém lançada 3ª edição envie um e-mail para claudiomar.rolim@uol.com.br